As recentes declarações do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, nas quais defende, na prática e na letra da proposta, a criação de um exército europeu, merecem uma análise pormenorizada.
Esta questão da formação de um exército europeu é uma matéria que tem sido alvo de várias tentativas desde que, pelos Acordos de Paris de 1954, assentes no propósito de reformular o Tratado de Bruxelas de 1948, passou a existir uma organização – a UEO – União da Europa Ocidental.
À face destes acordos a República Federal da Alemanha aceitou assumir uma auto limitação na sua capacidade militar.
Em face desta posição, e do subsequente acordo, a França retirou o seu veto à participação da Alemanha na NATO e esta foi admitida como aliado, e membro de pleno direito, na organização.
Antecedentes
da actual proposta
A inclusão da Europa Ocidental no sistema do Atlântico
provocou, na altura, a discussão sobre o que é que a Europa deveria fazer para
se ver livre da guerra.
Uns propunham a
neutralização da Europa, independente dos EUA e da URSS. Estavam neste
caso a Itália e a França, onde havia partidos comunistas fortes e alguma
simpatia pelas ideias comunistas. Outros defendiam o alinhamento Atlântico com
os EUA. Venceu esta tese, como se sabe.
Tais acordos
permitiram, posteriormente, à facção federalista dos fundadores das Comunidades
avançar em propostas mais concretas que visavam um aprofundamento das mesmas em
direcção a matérias reconhecidas como fazendo parte do coração da definição da
Soberania dos Estados.
Refiro-me à tentativa
de criação de uma Comunidade Política Europeia (C.P.E.) e o seu subsequente
braço armado, a Comunidade Europeia de Defesa (C.E.D.), de forma a tentarem
modificar a relação de poderes que começava a estar, ou já estava, desenhada no
final da Segunda Guerra Mundial, levando René Pleven, então Presidente do
Conselho de França, a apresentar, em 24 de Outubro de 1950, na Assembleia
Nacional Francesa, um plano que permitia a integração de unidades militares
alemãs no seio de um exército europeu.
Nessa altura, a
intenção era a de neutralizar de vez “o perigo alemão”, constituindo-se um
exército europeu, com um comando unificado, que integrasse as forças armadas
dos seis países fundadores da CECA. Para o efeito seria nomeado um Ministro
Europeu de Defesa, que teria como órgão de apoio um Conselho dos Ministros da
Defesa, dos diversos países.
Este exército, dos
seis, seria dotado de orçamento e de um programa de armamento próprio e, no
caso de ser necessária a sua intervenção, ficaria subordinado ao Comando
Supremo Atlântico na Europa.
Entretanto, em
Fevereiro de 1950, o Conselho da NATO, reunido em Lisboa, tinha aprovado a
intenção de se formar a CED.
Em vista dos
acontecimentos, Monnet, Spaak e De Gasperi, e os outros presentes, acharam que
era inútil, que era tempo perdido, esperar que o Tratado CED fosse ratificado
para se constituir um bloco militar. Resolveram, então, pressionar o
avanço de um projecto de União Política (CPE). Efectivamente no Luxemburgo em
10 de Setembro de 1952, os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Seis criaram
uma Assembleia ‘ad hoc’ cuja missão seria a de propor aos respectivos governos
um projecto de tratado de uma Comunidade Política Europeia.
Queria-se um exército
europeu, mas com uma legitimidade e um controle democrático. O referido artigo
38.º previa ainda a fusão, a prazo, da Assembleia da CECA e da CED.
A necessidade desta
“invenção” parece óbvia. Destinava-se a tentar legitimar, ou a tornar
natural aos olhos da opinião pública, o surgimento das novas entidades,
tentando dar-lhes um cunho de inevitáveis.
Os trabalhos da
referida comissão começaram em Setembro de 1952 e em Março de 1953 o projecto
foi apresentado aos seis. Este plano suscitou
dúvidas e reticências em vários europeus, nomeadamente em Paul Van Zeeland,
Georges Bidault, Vincent Auriol, (ao tempo Presidente da França), De Gaulle e
outros.
Tratava-se de um
projecto de cariz marcadamente federal, na linha da CECA. Em 9 de Março de
1953, o projecto da Comunidade Política Europeia, (CEP), elaborado pela
Assembleia CECA é remetido aos Governos dos Seis para apreciação.
É liminarmente
recusado. Em 30 de Agosto de 1954, a Assembleia Nacional francesa recusa a
ratificação do documento.
Nova tentativa surgiu
em 1962, da autoria de Christian Fouchet, ao tempo Presidente da República
Francesa.
O Presidente Fouchet
elaborou um documento que continha três propostas, sob a forma de Tratado da
União de Estados. A primeira previa a cooperação intergovernamental no domínio
de uma política externa unificada; a segunda previa o reforço da segurança dos
Estados membros, contra todas as possíveis agressões; a terceira uma
coordenação das Políticas de Defesa.
Desapareceu da agenda
política, em Abril de 1962, porque dois homens assim o entenderam, apesar de
estarem de acordo com o seu conteúdo: Konrad Adenauer e De Gaulle.
Nova tentativa,
denominada de P.E.S.C. (Política Externa e de Segurança Comum), surge com o
Tratado de Maastricht, tendo a partir daí evoluído em denominações para I.E.S.D.
(Iniciativa Europeia de Segurança Comum) e outras, mas sem efectivos resultados
em matéria de Segurança e Defesa e muito menos na possível criação de um
exército europeu.
A
proposta de Juncker
A proposta do actual Presidente da Comissão Europeia é
assim a terceira tentativa dos defensores da linha federalista de criarem um
exército europeu, que na sua génese tinha por base o propósito, enunciado por
Eisenhower, de que à Europa ocidental caberia criar mecanismos próprios de
Defesa face à ameaça da então URSS, embora sob o “chapéu” da NATO, de forma a
aliviar o “esforço” americano neste capítulo e de forma progressiva.
A França, apesar de
alguns dos seus governantes de então, terem tido a várias iniciativas, (U.E.O.,
Plano Pleven, Plano Fouchet) viu-se confrontada com as suas próprias contradições
e linhas de fracturas e ela própria fez cair essas tentativas iniciais.
Posteriormente já na
década de 1990, com Maastricht, a linha federalista (que se opõe à linha
Intergovernamentalista, esta até há poucos anos maioritária nos dirigentes
europeus) viu os seus esforços compensados com a introdução do 2º Pilar – a
PESC -, com o objectivo anunciado de dotar a União Europeia da possibilidade de
“afirmar a sua identidade na cena internacional através da execução de uma
política externa e de segurança comum, que inclua a definição gradual de uma
política de defesa comum, que poderá conduzir a uma defesa comum…”
Mas esta matéria, não
obstante a vontade da linha federalista, ficou sempre na esfera da Cooperação
Intergovernamental e até hoje nunca avançou (na prática) para a esfera da
Integração, leia-se Federação, não obstante o texto do Tratado de Lisboa.
O actual Presidente da
Comissão tenta assim formular uma quarta tentativa (desde 1950) propondo muito
simplesmente uma das vertentes da Defesa: a criação de um exército europeu,
embora anunciada como uma “cooperação estruturada de defesa”.
Isto, tentando
aproveitar o facto de existirem actualmente ameaças sérias a Leste (Ucrânia e
Rússia), bem como situações de grave instabilidade armada verificadas na Síria
e a Sul (Estado Islâmico) que se tornaram ameaçadoras para o continente.
A acrescer a estas
situações, na minha opinião, o Sr. Juncker tenta também aproveitar-se das novas
configurações do Terrorismo Internacional Organizado, e dos seus efeitos, para
convencer os líderes dos vários Estados Europeus a avançarem por esse caminho.
Bom, mas esta nova
proposta, choca a meu ver, com vários problemas de que destaco apenas três:
1. A constituição na
década de 1990 de uma Brigada Mista de Forças Armadas entre a Alemanha e a
França;
2. A divergência de
interesses, em matérias de Defesa (e noutras) entre a Alemanha e os outros
parceiros, facto que levou, por exemplo, ao caso do reconhecimento unilateral,
por parte da Alemanha – sem qualquer consulta aos restantes Governos dos
Estados da União Europeia – da independência da Croácia, o qual provocou uma
guerra no interior da ex-Jugoslávia em 1992;
3. O facto de que a
esmagadora maioria dos países da UE investem apenas entre 0,8% e 1,2% do seu
PIB em matéria de Defesa, por não terem apoio das opiniões públicas e
publicadas dos seus respectivos países, o que não deixa margem para grandes e
positivas previsões para mais esta tentativa. Isto ao contrário dos EUA que
investem cerca de 3,4% (em velocidade de cruzeiro).
Esta nova tentativa
provém, é bom lembrar, de um Presidente da União que agora iniciava o seu
mandato, e que agora precisa de se afirmar por iniciativas que estiveram
ausentes da anterior Comissão Europeia e que precisa de recuperar o Poder de
Iniciativa para um órgão de Poder da União (a Comissão) que se perdeu em grande
parte com o mandato do Dr. Durão Barroso, por instruções da Alemanha.
Vantagens
e desvantagens
Posto isto, penso sobre esta proposta que é uma
tentativa da actual Comissão Europeia de:
1. Recuperar o
prestígio e a capacidade de autonomia e de iniciativa da Comissão. Poder que
deteve, por exemplo, com a Comissão Delors;
2. “Empurrar” a União
Europeia para uma Federação neste campo, tentando na sequência arrastar outros
campos de acção dos Estados, como é o caso da Política Externa;
3. Tentar recuperar
algum prestígio da União Europeia no seu todo, face às Opiniões Públicas e
publicadas dos diversos países europeus que olham com cada vez mais
desconfiança para esta União.
4. Obedecer à proposta
da Alemanha sobre este tema.
Por estas e por outras
variadas razões, não encontro nenhuma vantagem neste projecto.
Isto porque a defesa
do Ocidente em geral, e da Europa Ocidental em particular, está assegurada pela
NATO. E é no seio desta organização que a União Europeia tem que fazer um
esforço adicional de investimento em Defesa por forma a cobrir o crescente
desinvestimento dos EUA, dada a reconfiguração dos seus próprios interesses
estratégicos.
Se a Alemanha quer
sair da “tutela” dos EUA não deve arrastar a União Europeia para tal
desiderato.
A que
tipo de ameaças futuras sobre a UE poderia fazer face
Assim, na minha
opinião prática e não teórica, não vejo nenhumas vantagens nesta iniciativa ou
proposta.
Aliás ficou patente na
presente crise da Ucrânia a disparidade de interesses entre as várias potências
europeias e a irresponsabilidade com que provocou a referida crise, a que
depois não soube (e continua a não saber) responder, dados os interesses em
presença.
Ou seja, ficou visível
de forma clara que os interesses da Alemanha, não são coincidentes com os da
França e estes não são coincidentes com os do Reino Unido, para já não falar
dos outros actores da União. Mas sendo agora uma iniciativa, na prática, da
Alemanha vejo mal como a França e o Reino Unido poderão afirmar o seu acordo.
Veremos.
Assim sendo, as
ameaças reais e potenciais sobre a União devem ser resolvidas no seio da NATO,
dada a disponibilidade de meios de armamento e comunicações estratégicas, a sua
estabilidade de comando, a sua experiência de funcionamento, as décadas de
existência e experiência acumulada, em que a superpotência dominante detém o
comando efectivo e os meios necessários e que funciona como agregador de
vontades.
Os EUA
ficariam sempre como a força mais poderosa do Ocidente
Para o futuro não há inevitabilidades, mas por
enquanto esta questão é incontornável.
Enquanto os países da
União Europeia investirem entre 0,8% e 1,2% do seus PIB neste campo e os EUA
investirem, em anos normais fora de conflitos, entre 3,2% e 3,4% do seu PIB,
estes continuarão a ser a potência mundial dominante em matéria de Defesa do Ocidente.
Os factos são o que
são e os números, neste caso, sobrepõem-se a discursos ou iniciativas mais ou
menos pomposas, mais ou menos publicitadas, que não passarão disso mesmo pois
não há condições práticas e visíveis para que seja diferente.
Do meu ponto de vista,
e tenho-o defendido publicamente, enquanto os países europeus desprezarem, como
têm feito, o tema da Defesa, a situação de predomínio dos EUA sobre o Ocidente
será um facto inquestionável.
E enquanto os
dirigentes de diversos países pensarem que a Paz Eterna de Kant foi alcançada e
que as ameaças à sua segurança e integridade acabaram com o final da Segunda
Guerra Mundial, a situação de degradação das suas condições de defesa
continuará a aprofundar-se e a agravar-se.
Esta situação de
degradação das condições de defesa dos diversos países da União Europeia,
faz-me lembrar o quadro da França, Bélgica, Holanda, da Polónia, da Áustria,
nos anos de 1930 o qual possibilitou à Alemanha invadir sem percalços de maior
os seus territórios.
As ameaças de hoje são
diversas, mais sofisticadas. Mas será que as ameaças clássicas estão
completamente postas de parte? Será que as modernas ameaças são menos violentas
e intrusivas?
Deus permita que sim,
porque em caso de não ser assim os diversos países da União Europeia irão pagar
caro os seus erros nesta matéria.
Subsistem na
racionalidade deste tema, os EUA que percebem que “As Nações não têm amigos…
defendem interesses”. E que, seguindo este princípio realista das Relações
Internacionais, ainda mantêm o Ocidente europeu na esfera dos seus interesses
estratégicos. Valha-nos isso.
Mas deixo uma
advertência: os interesses dos EUA estão a deslocar-se para a Ásia.
E coloco uma questão:
Estarão estes dispostos a continuar a investir o que têm investido na NATO,
enquanto “chapéu-de-chuva” da Europa? O futuro o dirá.
Conclusão
A meu ver, cabe aos
Estados europeus decidirem, em primeiro lugar cada um por si, se elegem a
defesa dos seus cidadãos, da sua integridade territorial e de defesa dos seus
recursos, como tema importante, ou não.
Se sim, terão que
inverter as suas políticas actuais de desinvestimento em defesa armada (meios
humanos, armamento, transportes e comunicações) dos seus territórios e
populações, de forma a voltarem a tornar-se credíveis no sistema internacional,
desde logo em capacidade de dissuasão das ameaças, reais e potenciais.
Se sim, e após os
investimentos necessários, terão que decidir se querem o fortalecimento da NATO
ou se querem proceder à sua substituição por outra organização de defesa
cooperativa e colectiva.
Uma coisa é certa, a
continuar neste quadro, cada um dos países enfraquecerá, tornar-se-á mais
vulnerável e menos credível no Sistema Internacional e perderá cada vez mais a
capacidade de dissuadir eventuais ataques ou ameaças.
Assim sendo, considero
a presente proposta do Sr. Jean-Claude Juncker uma tentativa voluntarista de se
afirmar como Presidente da Comissão Europeia, de agradar à Alemanha e uma
iniciativa de carácter eminentemente político-administrativa que pretende tentar
recuperar prestígio, junto dos dirigentes políticos e dos cidadãos das diversas
Nações Europeias, para um órgão da União Europeia que está profundamente
desacreditado: - A Comissão Europeia.
Miguel Mattos Chaves
Vice-Presidente da Comissão
Europeia da Sociedade de GeografiaDoutorado em Estudos Europeus (Universidade Católica)
Auditor de Defesa Nacional (Instituto da Defesa Nacional)
Gestor de Empresas
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